domingo, 20 de novembro de 2016

O PALETÓ XADREZ


Eu já usei um paletó xadrez, preto e branco
Nas ruas de Santo André, vendendo livros de porta em porta
Jogando sinuca na hora do almoço, arroz com bife e um ovo
E entre os peitos de duas garotas na Lapa, no início da noite
Com minha calça cor de vinho e o paletó xadrez
Esbarrei nos perigos, distraído
Quando dei os primeiros passos de uma existência tola
Quando bati de frente com faces cobertas de véu
E falas doces e venenos elaborados
Entre sombras e as nuances da semântica
Com meus pés em bolhas e meu paletó xadrez
Não soube entender o encadeamento
As regras que me escaparam enquanto colocava versos no bolso
Sobre a vida nas nuvens aflitas e baixas dos dias incertos
E fui perdendo a memória na vida liquida,
Esperanças pequenas e, por que não, válidas e justas
Depositadas na compra do meu paletó xadrez
Que meu irmão assumiu as prestações
E pagou também minha calça cor de vinho
E também o trompete que comprei na Quintino Bocaiuva
Porque eu achava que tudo podia acontecer
Depois dos livros que vendesse
Com meu paletó xadrez, preto e branco.
Hoje tenho estas correntes grossas
Que pedi que fossem enferrujadas
Assim como as janelas de ferro e as grades do portão
Colocadas sobre o chão trincado,
Sobre os veios de água barrenta que adentram o casebre
E desenham um caminho na longitudinal para o fundo
Para um campo aberto
De trilhos de terra e pontes estreitas
Sobre ribeirões em vias de desaparecer.
Na parede, meu violão vermelho
De tuas tarraxas envergadas
Ao lado do cabide e meu paletó xadrez, preto e branco.

domingo, 9 de outubro de 2016

MÉTODOS E CONVICÇÕES

Meu nome é Sardinha. Antônio Gomes de Sá Sardinha. Sou prefeito. Não, não o prefeito da cidade toda, ainda não. Tenho em minhas mãos uma das Regionais, algo conquistado com muita luta, tive que dar muito sangue, entrei em conchavos, fiz muita bajulação com as pessoas certas, é como dizem, é preciso estar no lugar certo na hora certa.
Olho esta cidade com muito orgulho e principalmente o pedaço dela que me pertence. Tenho de dividir um pouco, você entende o que quero dizer, os vereadores, por trás deles os fiscais, gente disposta a dar porrada, tudo necessário, a cidade é difícil, se não estiver todo mundo amarradinho não funciona. Aprendi com gente graúda, vi como é que se faz, quero dizer, a maneira como se faz.
A vida está difícil, ouço esta lamuria o dia todo, muita gente preguiçosa pelas ruas, muito vagabundo deitado pelas calçadas, muitos pedintes nos faróis, não sei de onde aparece essa gente, a noite então é um inferno.
À noite, sim. Nós temos um plano, sabemos o que o cidadão respeitável, o que paga impostos, quer. Ele não se interessa por métodos, quero dizer, quando a coisa estoura, ele pode até se indignar, faz jeito de democrata, aquela história de ir e vir, direitos humanos, mas é uma dorzinha que passa rápido. Se vê bons resultados ele sossega, não se pode carregar o mundo nas costas.
No fundo eu tenho muita pena dessa gente, sou cristão, vou à missa todos os domingos, confesso, comungo, doações faço pouco, se a gente solta a igreja acomoda, eles têm que fazer mais, não quero meu dinheiro sendo usado em política, Cristo fundou uma igreja não um partido.
São pessoas de todos os lugares, o País é grande, e por ser tão grande poderiam procurar outro paradeiro, as oportunidades estão em todos os lugares, mas não, preferem São Paulo, pensam que por estarem na terra do trabalho não precisam trabalhar, não sei se você me entende.
O plano é simples. Agora é noite, bem tarde na verdade, e estou na Praça da Sé. Há mendigos espalhados por todos os cantos, nas escadarias da igreja, nas marquises das lojas, em volta do metrô, uma nojeira. Daqui a pouco chegam os caminhões, são apenas dois. Ainda estamos no começo e se o negócio der certo, a gente pode pôr mais veículos, tem sempre particulares dispostos a colaborar, serve qualquer coisa, ônibus, até mesmo vans já ofereceram, não precisamos nem usar verba da prefeitura. É como eu disse, a nossa reciprocidade é o sigilo.
Está uma noite sem lua, tem até aquele friozinho gostoso que é característico dessa época, seria melhor estar em casa com meus filhos, mas é um trabalho que precisa de comando, tem gente que pode achar que não é muito certo, mas estou convicto, outro dia mesmo eu li algo sobre a ética da convicção, parece que era alguma coisa assim.
Já fizemos isto algumas noites, ainda não dá para notar resultados, sai dois vem três. Mas uma hora a fábrica não vai mais dar conta.
Lá estão eles, os caminhões estão encostando, vamos à nossa função social, vamos pegando um grupinho aqui, outro ali, alguns têm dificuldade de acordar, deve ser por isto que morrem queimados facilmente. A maioria cheira a álcool, também à urina e fezes, dias sem tomar banho, é preciso ter estômago, o cidadão em casa não imagina o que fazemos por ele. São mulheres, crianças, a maioria de cor, não digo negro porque podem achar que sou racista, e isto eu não sou, mas deveriam estar felizes por ser maioria em alguma coisa.
Dizemos que somos do departamento social da prefeitura, não usamos qualquer uniforme, não queremos fazer propaganda, a verdadeira solidariedade é anônima. Quando entram no caminhão parece que estão felizes, acho que exagero, parecem ter esperança, é o que aprendem desde que nascem, e por conta desse sentimento não fazem mais nada, sempre à espera que lhes deem de tudo. As crianças ficam grudadas nos adultos, devem estar acostumados uns com o cheiro dos outros, talvez sintam frio, carregam seus cobertores imundos, mendigo antigamente se cobria com jornal.
Temos um médico que nos acompanha, na verdade não é médico, mas sabe tirar uma pressão, e sabe dar injeções, está certo que do jeito que ele aplica deve doer, mas é uma dor que logo eles descansam dela, é disto que precisamos.
O caminhão vai andando, vou na cabine de onde observo tudo, gosto de ver como nosso medico vai aplicando as injeções, é vitamina ele diz, tudo muito calmo, é um santo.
Nem bem a gente pega a Anchieta e eles já estão dormindo, nem percebem o trajeto, não sabem se estão longe ou perto, é gente acostumada a estar cada hora num lugar, tanto faz.
Estamos atravessando a ponte do Riacho Grande, lá atrás está tudo calmo, nosso medico de vez em quando dá uns chutinhos em alguns, tudo muito delicado, para ver se tem alguém acordado, os outros dois ajudantes parecem cochilar lá encostados na porta de saída, não são bons vigias, mas são mais para o trabalho pesado, é incrível o peso que essa gente tem, não comem nada, deve ser a sujeira.
Hoje vamos para a esquerda, procuramos variar de lugar, a represa é grande, não há necessidade de correr riscos, sempre tem algum pescador noturno por aí, gente que mais bebe do que pesca, que está sempre dizendo que viu alguma coisa estranha. É bom prevenir.
O caminhão sai do asfalto e desce um pedacinho de terra, o outro vem logo atrás, encostamos na beira da represa, um dos caminhões traz sempre um bote inflável.
É sempre assim, paramos em algum lugar aonde não haja casas, a uma boa distância da estrada, estamos na margem, um pouco mais pisamos na água.
Sabe que aquele friozinho parece que sumiu? Sinto um calor no rosto, você sabe do que eu falo, parece assim quando a gente vai encontrar com a namorada, ou então quando vamos fazer aquela viagem que estava programada há muito tempo, me sinto como uma criança quando chega à Disney, você já foi à Disney, não foi?
A injeçãozinha do doutor funciona, vamos colocando de três em três amontoados no barco e ninguém acorda, quando é criança dá para por quatro, às vezes até cinco, são sempre miúdos, corpo mirradinho.
Nessa viagem agora eu vou junto, colocamos só dois adultos e uma criança, precaução, temos que contar eu e o homem que vai remar.
Procuramos ir mais para o fundo, quanto mais longe melhor, mas não paramos em um lugar só, mais espalhado é o jeito adequado de se fazer.
O ajudante tira o remo da água e acomoda em um dos lados dentro barco, o remo resvala na cabeça da criança, parece que sentiu a água fria, mas foi só um espasmo.
Vamos deixar a criança por último, pegamos um dos adultos e vamos empurrando o corpo devagarinho para fora do barco, sem fazer muito barulho, e num instante ele desaparece nas águas escuras. Não sei se a pessoa chega a acordar depois que afunda, mas é melhor que não, deve ser desesperador acordar com um monte de água por cima.
Agora falta só a menina, tem a cara suja, mas o rosto até que não é feio, os cabelos loirinhos, o mundo às vezes é injusto, tivesse nascido em outro berço até que podia ter uma vida decente. O ajudante vai escorregando os pés dela para a água, o corpo já desceu a metade, vai soltá-la e ela abre os olhos e me olha, seu olhar me pede alguma coisa, ia mexendo os lábios, mas não deu tempo, o corpo afundou todo na água.
A madrugada vai alta quando chego em casa, um lugar confortável aqui pelos lados da Castelo Branco. As crianças estão dormindo perto da lareira, o frio de hoje justifica. Mas não os acordo, vou até o barzinho e pego um uísque, é preciso relaxar um pouco. Sento na cadeira de descanso do lado da lareira, poucos passos a minha frente vejo o rosto de minha filha dormindo, vejo a mecha dos seus cabelos loirinhos caídos no rosto, ela abre os olhos e me olha e sinto um leve tremor na mão que segura o uísque. Mas logo passa.










domingo, 2 de outubro de 2016

A VIDA CIRCULAR DE BORJALO

Trecho de A Vida Circular de Borjalo:



"... Meu único filho bebia muito, era dado a boemia, um rapaz forte, de boa aparência, puxou a mãe, a quem não chegou a conhecer. A um certo estágio tive que arrastá-lo para clinicas de recuperação, mas nada durava muito. Conversávamos muito, bebemos juntos muitas vezes, vi a maneira como ele se atirava em discussões calorosas, de encontro ao seu fim e nunca consegui entendê-lo. Um dia arrumou uma pescaria, alugou um barco, descemos para o litoral de madrugada, da serra as nuvens formavam uma massa negra sobre o mar, o garoto parecia calmo. Encostamos numa ilha, duas horas mar adentro, ele dispensou o barco e pediu que o barqueiro viesse nos buscar no final da tarde. Não descarregou isca, não tinha equipamento nenhum de pesca, apenas uma caixa grande de isopor com gelo, uma caixa de cerveja e uma garrafa de uísque. O mar estava bravo, o céu carregado de nuvens escuras, mas não chovia. Sentados em uma pedra, era ainda cedo, um vento frio batendo em nossos cabelos, o menino virou-se para mim e disse que tinha ido ali para morrer. Eu fiquei estarrecido, não soube o que falar, seus olhos traziam um brilho estranho, disse que não havia nada que eu pudesse fazer e que não me sentisse culpado por nada e que ele, simplesmente, não queria mais viver. E que se eu tentasse impedi-lo, ele iria se jogar na água e nadar até perder as forças, até que o mar o engolisse. E assim foi que ele tomou a garrafa de uísque, um monte de cervejas e engoliu alguns comprimidos brancos que trazia no bolso da bermuda. No final da tarde, quando o céu ia se abrindo num cinza uniforme e a chuva era iminente, ele deitou-se na pedra e morreu ali mesmo, sendo que antes me deu um abraço e disse que eu era um cara legal. Voltamos com chuva, o barco pequeno sendo atirado para todos os lados pelas ondas imensas, o barqueiro praguejando, e eu dizendo a mim mesmo que se eu morresse naquele momento talvez ainda alcançasse meu filho pelo caminho..."


NORTE TODA VIDA

Trecho de Norte toda Vida:


"... lá pelos cinquenta, quando vislumbrava um certo tipo de fim chegando, juntei o resto que se podia contar e comprei um barco de pesca no litoral norte e fui viver no meio do mar,
não tinha casa para onde voltar, apenas um atracadouro num vão de ninguém num braço de rio onde descarregava alguns peixes e entregava em lugares certos, pouco e constante, nenhuma conversa ou perguntas, cachaça e cerveja e uma saída silenciosa até o dia seguinte,
vivi anos nesta rotina de silêncio e compromissos pequenos, com alguns e comigo mesmo, olhando o mar em volume flutuante dia e noite, chuva e sol ardente que torrou e escureceu e tornou minha pele em couro de lagarto, uma armadura trincada sobre um poço de memórias tentando não se lembrar de si mesmo,
o som da água noturna batendo em schlaps suaves na beira do barco em noites calmas ou o solavanco virando força de destruir, querendo varar a madeira nas noites e dias de fúria, o mar no desejo de inverter tudo de posição e jogando o barco pra ver seu fundo de esquecimento e encerramento, uma cortina que podia chegar como se soubesse que era ela mesmo que estava sendo procurada, silêncio em ambos os casos e situações, sem medo da morte e do seu rugido, patadas apenas, como outras de outros tempos e circunstâncias,
descendo o rio além do meu ancoradouro havia um hotel pequeno de um sindicato qualquer e Lourdes, uma negra bela e ciente dos olhares de desejo meus e dos outros, era quem recebia meus peixes todas as manhãs, com seu uniforme azul de golas brancas e coxas grossas a mostra, naquela hora em que os peixes escorriam para dentro da sua bacia de alumínio e eu mesmo entrando por ela por outros lugares em pensamento e Lourdes sorria, “até amanhã”,
e aumentavam os solavancos no mar, mesmo nas noites de calmaria, eu era um lobo do mar forçado, moldado na obrigação de se virar por algum lugar pra não ter que interromper a luta antes da hora, então eu saía para o convés do meu pequeno barco e via o continente ao longe, um recorte curvo ao longo das montanhas de costas peladas e verde-escuro na noite, as luzes enfileiradas e amarelas na linha do desenho, e Lourdes na direção certa do olhar, na espera do dia seguinte,
e nasceu Antonio um ano depois,
depois que Lourdes começou a vir me ver à noite, em um barco alugado que a deixava por lá depois do horário do hotel, e trepávamos horas e horas no balanço da água, Lourdes de olhos negros e boca vermelha e grossa, de poucas palavras como eu,
e Antonio puxara Lourdes com um leve tempero de caiçara falsificado meu,
e ele cresceu e aprendeu a pescar comigo, me ensinando de volta algumas coisas que eu tinha esquecido, um garoto que tinha o olhar perdido de vez em quando na vastidão do mar, ao entardecer, quando ficava mudo além do que eu e ele éramos no normal, maldição essa herdada de mim,
mas, se eu pude sobreviver, mesmo olhando adiante sem entender, ele não conseguiu e saiu um dia pela manhã e não retornou e Lourdes saiu pela cidade perguntando pelo menino e eu voltei para o mar para não morrer antes da hora, agora que uma coisa nova chegava eu não tinha coragem de ver uma outra dor novamente, aquele tempo de suportar tinha passado, eu tinha que morrer se tivesse que ver outro corpo inerte, essa repetição na minha frente,
e avancei para o alto-mar, para uma ilha longe da vista do continente e desci por ali e dormi na areia naquela noite, olhando o céu de estrelas, uma noite sem lua, a ilha e tudo escuro, o mar só no barulho das pedras e nas paredes do barco ali perto, uma noite de pesadelos e arrependimentos,
e dois dias depois um barco encostou na ilha e Lourdes se ergueu na proa, com um dos pés apoiado na beirada,
“você vem?”
“e Antonio?”
ela chorou de longe olhando pra água batendo no barco,
“ele sumiu...eu vou embora pra São Paulo, você vem comigo?”
“não”
ela ficou lá, parada por um tempo,
seu olhar balançando,
aquela figura escura e bela na proa do barco e eu achando que tudo seria melhor se eu esquecesse e seguisse,
o barco virou pra ir embora e Lourdes gritou adeus e alguma coisa mais que de longe eu pensei que era aquela coisa boa de se ouvir da boca de uma mulher, mas misturou com as ondas nas pedras e as gaivotas em volta do barco,
e logo o mundo era eu, o mar, a ilha e o barco na espera de alguma coisa, de um próximo passo, o último que finalmente veio dar aqui..."